Cantos de Tanta Fome
Fome é dor de vazio. Implicância da alma com a pirraça do corpo, com as carências do senso. Fome azeda caminhos que se faziam parvos, imaginavam-se mansos. Chega escondida em buracos cavados pelo hábito da distância de si, pela fuga esquecida, quando se revolta e cutuca. Surge com propósitos incertos, com sofrências mexidas, carências opacas. Vem de onde vem sempre mais, do anoitecer encardido, distraído de luar, quando cantarola cínico seu diapasão de ninar.
O primeiro a acordar naquele dia ou, pelo menos, a dar o primeiro alerta, quase público, não viu sua rua, seus vizinhos, o poste e nada mais que fugiu ao alcance de sua visão e não encontrou abrigo na imaginação. Saiu pela porta da frente e não reconheceu nada além da ponta do seu nariz e, voltando, não reconheceu de onde veio. Incúria de caminhos, ninguém soube precisar. A cidade noturna desvirou pessoas e paragens, miscigenou apartados. Diligências, vistorias aos autos, tudo anunciava a charada desmentida. Desacordados de sonhos, estridentes dos fatos, ninguém confessou. Seriam os lugares minudências da vida, assim sendo, indistintos e vagos, como o dia distraído da noite. A cidade baralhada conseguiu vagarosamente se reconhecer. O acordante cismado engoliu seco seu punhado de loucura e se calou do desarranjo. Acanhou-se cabreiro e passou a ruminar o vácuo do descabido. O endereço alterado só o corpo costumou. O canto trocado navega o ânimo no ar ralo da saudade.
A fome do lugar dói como as outras. A janela despida, a sensação abandonada de contexto, munição para descasar das emoções os pés cravados, nada caduca. Uma vez desfeito o elo com o chão, com aquele local preciso onde poenta e ascende um sol em horizontes lacônicos, vem o cavo de não atinar. Esvaziar-se dos refúgios acende o desassossego curioso de mundo. Acalenta outras mínguas a enterrarem o buraco suspenso. O meliante do espaço não se lembra do soalho frio, tromba no escuro com móveis sorrateiros, traga a fadiga do tempo, o retorno esquecido que não houve trilhar.
Volta-se para dentro, para o cômodo percebido, atrás do nariz que figura. Andeja de costas, para não esquecer o deserto deixado. Os olhos abrem-se ao avesso, para as fomes restantes ainda a cevar. São vazios diferentes, as dores de um não respiram as outras, às vezes acalmam. O desconsolo de tantos cantos evoca venenos sem prevenir, ensimesma o nativo que ousou vadiar, atolou-se em proezas de não saber voltar.