O pedaço esquecido
Inspiro do entulho a memória de cada pedaço do que seríamos. Cada ferrolho, cada madeira podre, cada tijolo desabado fizeram sua parte em prumo, em coreografia inanimada do cenário acolhido. Tramamos um dia o conchavo de superar as barreiras de cada, de botar corpos em pedaços precisos, de alugar corações recíprocos e nos abraçar de escuros. O vazio a morar respira a sensação dos desatinos costumeiros, perde o sentido enquanto apartado dos signos. Conciliado, recria percepções malcriadas a instigar as querenças do espaço entretido, do conchego sortido. O receio de acolher nuances não debanda, esconde-se aflito nas gretas tímidas, nas palavras agarradas, na lágrima esgotada nas veias. Ali encontramos o arranjo de dois, o retrato possível dos limites teimosos. Cada quina quebrada guardou uma mudança tardia que esticaria o encontro. Não foi.
Guardo a casa em cantos distantes, em lembranças de cheiros, nos toques ásperos de corrimão em escadas planas que imaginamos subir, nos parapeitos fartos de esperar os olhares de janelas, perderam os ventos de reanimar. As chaves guardaram dentro quem se esqueceu de entrar. Nunca chegamos. Sinto a fantasia do antes, os planos de arquitetar vivências, de expor emoções em quitandas de tudo. Nem sei se tentamos. O nascer e o ruir tramaram a mesma arrogância e não atinamos consumar nosso enredo. O lixo viu passar nosso medo, a mesa decorou-se definitiva.
Não vejo a parede demolida, ainda enxergo a porta aberta em convites, a soleira molhada do tédio chuvoso, o musgo a tecer pelos úmidos em trincas nascentes. Foi aqui mesmo que destruí meus carinhos, te fiz solitária, apressada de ir. Penso revirar o entulho, cavar buracos de canteiros antigos onde sobraram os matos, pegar cada peça e remontar um sonho abatido. Te achar em pedaços de quebra-cabeça, congelar o tempo em seu colo e entender a mulher revirada, urgente, explodida de tantas matérias. De longe, fantasio viver para trás, como um filme voltando, ver a casa crescer, os pedaços reconquistando formas, o reviver das flores, o antigo regresso. Eu fora outra vez, como sempre fiquei, buscando meu espectro, receando te sentir demais e te ver demolida. Nunca entrei. Nunca entrarei. Você não voltou quando as paredes subiram, já tinha vivido o que perdi, não te sobraram quimeras, eu, sim, esqueci de nascer, me perdi para vida distante, não te morei. A casa esqueceu-se nas balbúrdias de dentro, rasguei os sonhos brincantes de alegrias descontadas, de você nem me lembro, tal o medo de amar.