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Marcelo Pimenta

Canto de tantos


Canto de tantos (imagem: Google) Salssisne

Demoro no galope das ruas. Árdua vereda de descamisar corpos, embrutecer ânimos e acudir. Busco um galeio em cada esquina, como se agarrasse cada beirada de parede e me puxasse para ela, e assim chegar à próxima, ao cume merecido de estar, aonde chega quase ninguém. A rua é íngreme e elege seus termos, então se passa charmosa e entretida de cores. Do pé da ladeira o olhante meão alui a toada, mas não perde a audácia, encontra forças na sede arbitrária, na rudeza de outros, no flagelo livre que houve aprender. Assim vagaroso, duro e insisto. Moro em cinzas, durmo em bancos sujos, vagueio por ruas estreitas com pedras dormentes. Vejo sobrados grudados uns nos outros, alastram em taipa única, caiada de branco, com portas fechadas imitando prisão. Eu mesmo nunca costumei com o livre, nem com a dúvida. Cismei para mim uma cadeia pequena, do tamanho exato da liberdade perdida, para que ela coubesse justinha e não fantasiasse mexer, desvirar o acordo e se refazer. Há ainda um pátio gigante entre as casas casadas, por ali apeamos a sorte, damos trela a todos os que se alforriam na graça.

Quando era miúdo andei por essa mesma estreiteza, corri por essas ruas de cores, de nome liberdade. Tinha a mão riscando em paredes, amiúde para não me perder, para sempre voltar, intrigas maternas. Foi há pouco tempo, descobri em surrupio o golpe invertido. Não as desenhei de dedos sujos, andei de mãos dadas com elas. Fiz caminhos de contar e recontar alegrias, de janelas de risos abertas e gente que gosta. Minha lida de mãos estendidas, de puxar ladeira acima, de segurar no embalo cadente, de surrar a barriga de cócegas e gozar de existir em conjunto. Tinha esse afeto comigo. Eu com ela esse alarde por dentro, de rabiscar os portais de cores, naquele branco lento, e remedava a sensação de viver descabido do medo, desgraçado do escuro, na roda de tantos, diferentes e quase iguais, nesta subida longa de assanhar a criança.

Mas a estação das miragens varia no mundo de graus e giranças, troca o senho da vida. Nestes dias, ninguém desacomodou, confundiu-se a parede e se virou para dentro, ou ficou de costas para nós, onde não passa ninguém, onde não pensa brincar. Foi o dia que cresci, quando entendi a trilha abstrata de caminhar ímpar por onde deixei corações, por onde espalhei ideias, varri imundices e esqueci injustiças. E voltamos velhos à sensação de arrepio, à desavença com outros, ao carro enguiçado carregando o conto medroso de si. E eu, que ainda coro em vermelho tímido, me escondo em jaulas enormes com meus pássaros de mentir, espremo a esperança com força, até ficar pequenina, do tamanho de caber meu sonhar.

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