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Mar raso


Foto: Kika Martins Ribeiro

Você não conhecia minha amizade com o mar. Linha de barcos melancólicos. Te confesso, perdido até o horizonte, nem eu me imagino tão longe assim, longe de mar é diferente, a monotonia larga invade e se mexe nos raciocínios até vigiá-los, entra por cada fio pensante e revive emoções, liga e desliga, até agitá-las por dentro, dar-lhes outra vida, uma que não conhecia quando eram alheias. Posso pular e me afogar de novidades, posso interrogar as marolas e fingir calmaria. Ondulo como o barco ancorado, o sobe-desce me enjoa, a areia não se mexe e me agride, perco olhares, me machuca também o vento. Levanto-me impregnado, melado de tudo, os pés cortejam pegadas apagadas, recusam, agora vejo alto toda a paisagem e respiro sal, alegra-me saber da existência pacífica entre meus abismos marítimos e a rasura da praia, não há, repito do alto, não há, apenas ventam essas palavras. Capengo a volta, a areia ferve e me espanta. O sol diminui meus olhos, mas deixa uma fresta por onde te vejo, apertada, quase apagada.

Percebi você naquela beira de mar e tive a impressão da inocência. Caminhava com um pensamento de furar ondas, não lhe queimava nenhum sol, talvez feita de brilhos e cores, todas. Você olhava acima das brincadeiras tediosas, deslizava suave entre corpos suados, despia-se da fantasia carnívora, vestia música e prazer, era o que se via no miúdo da vista, bastante para querer, talvez vago para ter. Dava a parecer desejos aqui e ali, você chamuscava vontades, atiçava querenças, manipulava escolhas, como a mulher que belisca uma coragem acordada a ver se está, se de sonhos não salpicou a vida e agora dorme. Você vive, destrata o resumo estragado dos contos, você enguiça dúvidas, reconta os estragos, desassossega a impressão.

Te vasculhei também, o encontro fortuito declarou a enxurrada de aflições e escorreguei nas rasuras, iludiu-me a mania do aplauso inútil. Não que te quisesse a meu lado, te quis do seu, onde você se navega, enrosca-se em alegrias, afaga seus medos, disfarça com sorriso mole a manobra dos santos. Lembro em mentira minha a vista fundida com a sua, como se entrasse em seus modos e descobrisse o carinho do mar, o amor folgado, a fraude pausada. Flertamos com um desacontecido, inquieto em mim, me conta a lembrança, meu invento, você, desculpe, ando perdido em vírgulas.

Andei a vê-la aos bocados que permitiu o prazer. Ela diminuía distâncias com carinhos forjados em sinceridade e paixão, sorria eterna acima de choros e dramas. Foi dela o sussurro óbvio a espremer um orgasmo - sou o seu flagrante, olha para mim.

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