Frio inclinado
Atualizado: 24 de nov.
| Marcelo Pimenta – novembro 2024 |
Nem escolhas são feitas e nem preciso, nem lutos são tantos e sem preciso, quando você notar já terei ido. Certa manhã, o vento mudou. Um sussurro desconhecido atravessou as portas que sempre estiveram fechadas, ele não bateu, não pediu licença, apenas entrou e se acomodou, trazendo consigo um frio ardiloso, frio de partidas.
O garoto, posso ser eu e nem me reconheço, notou que mesmo correndo sem camisa, o sol amarelado, notou que seus cabelos iam à transversal, abosutamente anormal sentir frio de vento, não na frente, de onde rompe o ar, mas de lado. Quando percebeu essa crueldade ele não parou para se indagar o motivo de tal mudança, fez o que todos fazem, na mesma correria ele botou o dedo indicador direito na boca, molhou com o pouco de cuspe que tinha, mas tinha, levantou o dedo a conformar o frio, seria de frente, seria na frente, do dedo, e não foi, veio de lado, como o rio do corpo, como o lançar dos cabelos. Aí sim ele se parou, notou então que os demais já tinham parado a muito tempo, pequeninos, o bastante para vê-los dedos, para a dúvida aprumada, queria um prumo, e o lado do corpo frio, o suor economizado pingava de frente.
As autoridades logo-logo se manifestaram, sem alarde, ora, o fenômeno tem demanda cientifica, sem que ele conhecesse o desentendido, sem alarde, sem verdades, sem, verdades. Tudo estava muito claro, o olhar do horizonte mudara, a montanha se transformara em uma árvore grande que ficava bem para lá, o sol passou a nascer em outra fresta da janela, passou a sair por em outro pedaço de meus olhos, mas eu vi, as escolhas, as folhas, todas caíram para onde sempre cairiam, o mesmo chão tórrido, talvez mais pra lá, pôr de sol tem vento, diagonal.
Aquele garoto acabou se acostumando com a cidade tresrodada, o mapa da escola mudou para acomodar o assunto, a escola não mente, o assunto do vento deve ter sido muito bem resolvido, senão o mapa da escola não estaria torto, a escola não receberia raios errados. O frio atravessava errado sua correria, seus cabelos corriam para outro lado, não importa, alguém velho, alguém sábio, deve ter explicado, Eu é que nunca fiquei sabendo, foi o que sempre pensou, sempre que um galho seco passava em direção errada, todos se acostumaram, ele não, todos mantiveram penteado os cabelo, o dele torto, a cidade torta, a casa rodada.
De hoje, quando vejo a cena vagando lugares também enganosos em meus olhos, não sei se apenas voltei ou era eu mesmo, o garoto, ou se foi o vento a atrapalhar meus cabelos, voá-los no sentido daquela folha seca e solta. Notei que vieram lembranças, não tão soltas e tortas, de um tempo em que o corpo era território de liberdade, o menino corria pelos caminhos sinuosos e sentia o calor do sol, o cheiro da terra e a promessa infinita de futuros que nunca seriam interrompidos, o sol jogado para traz, o frio na face. Mas agora, sentado em silêncio, ele se parece mais comigo, percebe que nunca se deu conta de que o chão era tão vasto e que o ar tinha um peso tão leve.
Uma sombra se deitou na casa do lado errado, desbotada, vaguei, te vi, não chore por mim, não acolha lutos vadios, é apenas o vento que trocou de lado, a casa, vasta de cheios, ela se desviou, a janela que voce olhava não esta mais lá, mas esta em algum lugar, ache, veja, é uma casa distorcida, seja no dia de sol exímio, na noite festeira, mas falar é fácil para quem não sentiu o frio atravessando, chegou no sopro do vento, como quem traz notícias de terras longínquas, noticias noturnas são sempre ruins. Primeiro, parecia apenas o desalinho do frio, um desvio sutil no ritmo habitual das manhas e no caminho pregado na testa. Mas aos poucos aquela sombra errada, inesperada porque não era seu canto, ela esticou seus dedos pelos cantos, apagando as cores, trocando o som das risadas pelo eco das perguntas que ninguém sabia responder, meu pai atônito, se nem ele e eu, eu que já vira mudado o mapa da escola, as autoridades adoram achar deslumbre onde só tem festa morta, vai saber, mas você se foi com o sol, achou suas torturas e eram outras.
A casa, antes cheia de movimento, agora aprendeu a silenciar. Nos espaços entre as horas, começou a ouvir histórias que antes passavam despercebidas: o suspiro das árvores, o tique nervoso do relógio, o ranger do assoalho que sustentava tantos passos. E, no silêncio, algo estranho aconteceu, ela percebeu que nunca havia prestado atenção no peso de sua própria respiração, nunca havia percebido seus clarões de sol, onde deixavam mais seco o chão, onde se podiam ver as versões.
Os dias se tornaram espelho, cada gesto refletia significados que antes pareciam pequenos. Um copo d’água deixado na mesa trazia a memória de mãos antigas que o fizeram pela primeira vez. Um raio de sol entrando pela janela não era apenas luz, mas um lembrete de que o mundo lá fora seguia pulsando, indiferente às sombras que moravam dentro, o garoto insistia, vejo-me lá ate hoje, se voltei enfim, foi por não ter mudado de olhos.
A poeira, ao se acumular nos móveis, sussurravam sobre o tempo que desistia de passar, mesmo quando parecia parado. As paredes, desgastadas em suas bordas, contavam que nada é eterno, mas que tudo deixa marcas. E as plantas no quintal, ainda verdes apesar do descuido, mostravam que a vida tem uma insistência própria, mesmo quando parece esquecida, torta, mesmo quando é rarefeito o ar a assombrar aquela mente que nunca parou de correr.
Foi então que a casa começou a conversar com a sombra. Não em palavras, mas em gestos. Aprendeu que ela não era apenas ausência, mas também espaço para o que ainda não havia sido preenchido. Entendeu que as perguntas não eram um fardo, não existia luto, eles não moram em perguntas, principalmente nas tortas. Percebeu, por fim, que a sombra não queria tomá-la casa, apenas lembrá-la de sua fragilidade e, quando, um dia, voce decidir partir — porque ela também sempre parte, mesmo que deixe ecos —, a casa saberá que já não será a mesma sem você, e saberá que você não conheceu meus cabelos tortos, o frio inclinado, seu luto reto ninguém questionou, nem eu de partida.
Gritei mas ele não me ouviu, queria me despedir do garoto finalmente entendido, talvez o vento torto, outros ouvidos ouvirão, sempre ouvem o sussurro de ontem, de outro. Continuei correndo com ele à distância de não me confundir, apenas para provar que um mapa trocado não me corta, meu caminhos são ases dele. Abanei a mão e ele viu, o sol batia em seu rosto embora as nuvens, as nuvens existiam e o sol, amarelava aquela, uma face que era a minha, naquele único quintal que não era torto e era o meu. Abanei a mão para você e já tinha se mudado, as pessoas mudam muito, era uma das coisas que pensava enquanto corria, pois até o vento mudava, o frio, a cidade, a casa, menos meu nariz antigo sempre ali a me dizer algo, eu sempre procurando no futuro as respostas do passado.
Assim, a casa permanecerá. Não como era antes, mas como aprendeu a ser, um lugar que carrega suas histórias, que celebra cada rachadura como prova de sua existência e que, mesmo conhecendo a sombra torta, continua a florescer, no silencio daqueles que existem quando nos botamos a pensar alheios, no silêncio de uma lágrima que esqueceu de se despedir.
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