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Frio inclinado

Atualizado: 4 de out.

[improviso xii]

 

Nem escolhas são feitas e nem preciso, nem lutos são tantos, precisos, quando você notar já terei partido. Certa manhã, o vento mudou. Um sussurro desconhecido atravessou as portas que sempre estiveram fechadas, ele não bateu, não pediu licença, apenas entrou e se acomodou, trazendo consigo um frio ardiloso, frio de partidas.

 

O garoto, posso ser eu e nem me reconheço, notou, mesmo correndo sem camisa, o sol amarelado, seus cabelos iam à transversal, absolutamente anormal sentir frio de vento, não na frente, de onde rompe o ar, mas de lado. Quando percebeu essa crueldade ele não parou para se indagar o motivo de tal alterança, na mesma correria ele botou o dedo indicador direito na boca, molhou com o pouco de cuspe que tinha, mas tinha, levantou o dedo a conformar o frio, seria de frente, seria na frente, do dedo, e não foi, veio de lado, como o rio do corpo, como o lançar dos cabelos. Aí sim ele se parou, notou então, os demais já tinham parado a muito tempo, pequeninos, e seu suor economizado pingava de frente.

 

O fenômeno tem demanda cientifica, foi o dito, sem que ele conhecesse o desentendido, sem alarde, sem verdades, sem. Tudo estava muito claro, o olhar do horizonte mudara, a montanha se transformara em uma árvore grande que ficava bem para lá, o sol passou a nascer em outra fresta da janela, passou a sair por outro pedaço de seus olhos. Mas eu vi, as escolhas, as folhas, todas caíram para onde sempre cairiam, o mesmo chão tórrido, talvez mais pra lá, pôr de sol tem vento, diagonal.

 

Aquele garoto corria, acabou se acostumando com a cidade tresrodada, o mapa da escola mudou para acomodar o assunto, a escola não mente, o assunto do vento deve ter sido muito bem resolvido, senão o mapa da escola não estaria torto, a escola não receberia raios mudos. O frio atravessava errado sua correria, seus cabelos corriam para outro lado, não importa, alguém velho, alguém sábio, deve ter explicado. Eu é que nunca fiquei sabendo, sempre pensou, sempre que um galho seco passava em direção errada, todos se acostumaram, ele não, todos mantiveram penteado os cabelo, o dele torto, a cidade torta, a casa rodada.

 

De hoje, quando vejo a cena vagando lugares também enganosos em meus olhos, não sei se apenas sonhei ou era eu mesmo, o garoto. Noto lembranças, não tão soltas e tortas,  de um tempo em que o corpo era território de liberdade, e o menino corria pelos caminhos sinuosos e sentia o calor do sol, o cheiro da terra e a promessa infinita de futuros, nunca seriam interrompidos, o sol jogado para traz, o frio na face. Mas agora, sentado em silêncio, ele se parece mais comigo, nunca se deu conta, o chão era tão vasto, o ar tinha um peso tão leve.

 

Então fugi em meus olhos trementes. Uma sombra se deitou na casa do lado errado, desbotada, vaguei, te vi, não chore por mim, não acolha lutos vadios, é apenas o vento, trocou de lado, a casa, vasta de cheios, ela se desviou, a janela que você olhava não está mais lá, mas está em algum lugar, ache, veja, é uma casa distorcida, seja no dia de sol exímio, na noite festeira. Mas ela ainda te guarda, os lutos escondidos não reclamam, esperam, te esperam sentir o frio atravessando, como quem traz notícias de terras longínquas, noticias noturnas são sempre ruins.

 

Não chore muito, o vento trocado, o rumo incerto das sombras, desassossegou o silêncio, ele então partiu. Um dia você também partirá e casa saberá,  já não será a mesma sem você, e saberá que você conheceu meus cabelos tortos, o frio inclinado, o sopro de seus lábios no alpiste dos pássaros, o carinho com os matos, eu vi, mas eu já vinha morto, vida de morto não conta, principalmente quando corre tanto, o garoto.

 

Gritei mas ele não me ouviu, queria me despedir do garoto finalmente entendido, talvez o vento torto, outros ouvidos ouvirão, sempre ouvem o sussurro de ontem, de outro. Continuei correndo com ele à distância de não me confundir, apenas para provar que um mapa trocado não me corta, meu caminhos são as frases dele. Abanei a mão e ele viu, o sol batia em seu rosto embora as nuvens, as nuvens existiam e o sol, amarelava aquela face e era a minha, naquele único quintal,  não era torto e era o meu. Abanei a mão para você e já tinha se mudado, as pessoas mudam muito, era uma das coisas que pensava enquanto corria, pois até o vento mudava, o frio, a cidade, a casa, menos meu nariz antigo sempre ali a me dizer algo, eu sempre procurando no futuro as respostas do passado, nos silêncios as lágrimas esquecidas de despedir.

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