A palavra inaudita
Apenas uma palavra não foi dita. Entre tantas réplicas e tréplicas nenhum deles falou o que, de tanto tentar, perdeu-se no desencontro dos corpos. Estão sentados, os olhares cruzam-se sem buscar abrigo. Dali miram caminhos sob perspectivas próprias e desacostumadas ao diálogo. A penumbra retém as marcas que não querem imaginar. Estão a distância de um braço, mas nega o toque. Divergem. Inquietos, como são as ansiedades agonizantes e presas. Levanta-se como se fosse fugir para o mesmo lugar. Espera como a adaga que ainda goteja o sangue despercebido, desquerido.
Explode em emoções aguçadas nos tempos de acúmulo. Como um balão inflado, estoura com o último sopro tão guardado. Escuta sentado, de pé, andando sem eira, perde-se em razões solitárias. São dois a se desfazerem na luta insana entre o peso reparado e a distância do que um dia viram tão perto e tão longe. Miragem. Fluidos, com a forma das tramas incontadas. São mentiras sinceras, escondem o deslinde covarde, parte das entranhas do ser leviano e estranho. Um pote pequeno onde devemos conviver tantos medos, tantos sonhos. As contradições batem à porta dos fundos. Ignoramos. Tornam-se conflitos, escondem-se no íntimo e crescem cúmplices do egoísmo inaudito, do encontro furtivo. Negam a dor. A palavra esquecida.
Já estão de pé. Cúmplices do engano, reféns da dúvida morta. O que foram perde-se em mágoas fugitivas. A ousadia do fado insiste em olhares oblíquos, negam o passado. As novas certezas nascem do mesmo tempo, da confissão dos conflitos incertos, da percepção de fugas efêmeras. Não existem mais que gritos presos em desprezo da música, do que poderia. Engasga-se com a fúria das sensações incontidas, vomita a única saída em feridas. Sofre com a dor encardida, segue cega do destino, ávida por começos sem tréguas.
A rua um dia os soube, mas não viu a porta debruçada em fechaduras. Derradeira, mostrou o caminho sem rumo que leva os tardios. Alagada da noite, não ouviu a palavra abatida. A palavra abortada, presa. Não.